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Foto do escritorL. Antilibertários

Refutando a dedução da Ética Argumentativa Hoppeana

Nesse post refutaremos o grande pilar da argumentação anarcocapitalista que é a ética argumentativa hoppeana. Sempre que são refutados sobre aspectos práticos do funcionamento da sociedade, ancaps se apegam a suposta defesa da ética como escudo para ainda terem desculpas para se manterem ancaps. Não negando a importância da ética para o debate público sobre tudo mas essencialmente uma forma de mostrar que mesmo sobre essa ótica o anarcocapitalismo não se sustenta, vamos refutar a ética argumentativa hoppeana que foi exposta nesse artigo.


Antes de continuar gostaria de fazer uma breve definição de um termo que será amplamente usado no texto que por mais que pareça ser auto explicativo acredito que uma ou outra pessoa não vai entender e isso comprometerá todo entendimento do post que é: propriedade privada como lei absoluta. A princípio como eu disse é auto explicativo, significa a propriedade privada como lei máxima, nada nem nenhuma lei pode passar por cima dela sob qualquer circunstância. É basicamente uma sociedade anarcocapitalista. Uma sociedade que o direito de propriedade rege todas as relações sociais e toda e qualquer lei que for ser feita de forma secundária deve se basear nela. Assim é inadmissível por exemplo a lei do imposto, que todas as pessoas teriam que contribuir com parte da sua produção para manutenção de serviços públicos mesmo contra sua vontade. Serviços públicos esses que existem porque a sociedade tem a vida humana ou o bem estar social como fim nem que pra isso tenha que sacrificar a propriedade privada como lei máxima, sendo a propriedade privada existente mas condicionada a regras sociais.


Repare que é possível existir propriedade privada mas essa não ser lei absoluta, sendo essa passível de ser não aplicada visando um outro fim que se julgue mais importante, o que não significa que será uma sociedade com leis totalmente aleatórias, apenas que a propriedade privada não é lei absoluta. Acredito que algumas pessoas terão dificuldade de entender esse conceito por estarem tão imersas na visão libertária de mundo que simplesmente não consiga conceber que exista propriedade privada em alguma sociedade sem que essa seja a lei absoluta. Na cabeça de alguns anarcocapitalistas o fato de existir leis como impostos significa que não existe propriedade privada, significa que o que é seu não é seu, que o estado faz o que quiser com sua propriedade, que o estado estaria apenas te dando permissão especial para usar a propriedade dele como ele quer naquele momento porque é mais vantajoso. Acontece que como fica claro tal visão de mundo é previamente orientada a pensar da forma libertária, é enviesada e nada tem a ver com uma realidade mais neutra possível. Dizer isso é ignorar também que mesmo não se organizando de maneira a satisfazer a propriedade privada como lei absoluta ainda sim há leis sólidas que são seguidas, no caso dos estados normalmente esses tem constituições e tem registrado claramente como ela funciona, o que cada um pode ou não fazer e o que acontece se fizer algo que não deveria fazer. Claro que ela não pode cobrir absolutamente todos os aspectos da vida do indivíduo ao longo de toda existência da humanidade, mas em um aspecto geral se sabe por exemplo que uma vez que a pessoa detém a propriedade de algo sob a tutela do estado qualquer um que tentar se apropriar desse algo será punido, o que é totalmente diferente de hora alguém poder se apropriar desse mesmo algo e hora não poder. Assim fica claro que pode existir lei não aleatória em uma sociedade sem propriedade privada como lei absoluta.


Ainda sobre a crença de alguns ancaps que não é possível dizer que existe propriedade privada se existe leis como o imposto, se assim fosse significa que qualquer um poderia entrar em qualquer casa, pegar produtos do supermercado e sair sem pagar, pegar carros em concessionárias e sair dirigindo sem pagar, etc... o que obviamente não acontece. Se assim fosse poderíamos concluir que imposto não seria roubo porque para roubar algo da pessoa devemos presumir que é de propriedade dela previamente, se não existe propriedade privada a produção nunca foi da pessoa e sim do estado e esse só está pegando o que é dele de volta. Alegar que o fato da pessoa trabalhar em algo já torna dela e isso precede o estado é ignorar que se partimos do pressuposto que não existe propriedade privada previamente porque existe a lei do imposto a relação nada mais seria que um patrão (estado) e empregado (indivíduos).


A verdade é que propriedade privada significa que algo está sob posse exclusiva de uso e regras de algum indivíduo ou entidade, o que se opõe a propriedade pública que todos podem usar e fazer as regras, mas como tem vários donos obviamente deverá se passar por um consenso entre os donos, não podendo por exemplo um indivíduo fazer sozinho a regra que quer. Assim é totalmente possível existir bens e serviços que estão sob propriedade de um indivíduo ou entidade específica, mesmo que esse indivíduo ou entidade específica esteja sujeito a regras que se sobreponham em dado momento a seu direito de propriedade visando algum bem maior que se julgue mais importante que a propriedade privada. É obvio que aqui estou apenas apresentando a definição e não fazendo nenhum juízo de valor, afinal esse será feito ao longo do texto. Com tal definição clara vamos para a refutação ao artigo em si.


Em um primeiro momento é dito que Kant/Kantianos não poderiam ser considerados propositores éticos válidos por serem incapazes de limitarem a verdade a um

caminho único, ou seja serem incapazes de formular uma ética universal. Mesmo que isso seja verdade não é demérito algum para os kantianos pois é simplesmente impossível formular uma ética que aponte de maneira satisfatória tudo que é certo e errado e resolva absolutamente todos os conflitos em todos momentos. A ideia de uma ética universal é uma grande utopia que nem mesmo os ancaps que se propõe a tal conseguem formular. Então logo de início apenas prepotência ancap por algo que como veremos até eles falham em fazer. É então passado por um breve resumo sobre Karl-Otto Apel, um filósofo alemão do qual é importante falarmos um pouco sobre antes.


Sobre Karl-Otto Apel, Habermas, argumentação e contradição performativa


Para Apel dois fatores contribuíram de forma decisiva para a configuração de nossa situação histórica atual, que é o desenvolvimento científico e tecnológico com suas conseqüências globais para a ação humana e o processo de globalização ocorrido em vários setores da sociedade como um todo. A capacidade humana de moldar a natureza cresce de maneira desproporcional a criação de critérios morais que permita dirigir esse processo.



Karl Otto-Apel

Influenciado por Popper, ele desenvolve uma particular visão da filosofia da linguagem que considera como uma sentença válida aquela que se funda em dados empíricos e verificáveis, que o sentido é dado pelo uso das sentenças e estas se contentam, também, com um critério empírico de verificação , ainda que lingüístico. Ou seja, Apel considera como válido sentenças que se sustentam com base argumentativa sólida e que possa ser verificada, o que parece ir contra a ideia de axiomas muito defendidos por ancaps. Segundo ele mesmo:




“Isso significa: na argumentação surge o dever recíproco de fazer valer exclusivamente argumentos e nenhuma outra instância alheia à argumentação, isto é, nada pode ser reivindicado como válido a não ser aquilo que possa ser fundamentado discursiva e responsavelmente por argumentos e, portanto, o dever de resolver dialógica e argumentativamente todas as pretensões à validade da vida humana, do qual resulta que todo conteúdo que se apresentar como digno de ser reconhecido como válido, terá que ser, em princípio, capaz de consenso.”


Apel enfatiza a dimensão pragmática da argumentação, coloca as regras do discurso como condições transcendentais de sentido e a comunidade como fator que verifica a validade do argumento. Para ele existem três regras a serem seguidas em um debate argumentativo para que esse seja válido:


1) Que as preposições sejam compreensíveis para os sujeitos da argumentação (função de mediatizar o significado dos objetos da argumentação);

2) Que a argumentação seja válida intersubjetivamente (justificar as pretensões ou explicitar as razões da argumentação);

3) Que a justificação das pretensões levantadas seja responsavelmente aceita por todos os sujeitos lingüísticos (consenso da comunidade de argumentação);


E aqui já temos nosso pequeno problema que também se estende a Hoppe, sobre derivar uma ética universal a partir de argumentação já que nem todas pessoas podem atender ao critério 1, pois nem todos são capazes de argumentar, vide crianças ou pessoas problemas mentais. Outra problemática de tentar derivar a ética hoppeana com base em Apel é que como já exposto no final, um argumento só será válido se no final for aprovado por uma comunidade o que vai totalmente contra o que diz Hoppe que busca uma norma universal prévia, uma espécie de verdade absoluta que independe de aprovação popular. Mas como fica claro no artigo a influência de Apel sobre Hoppe se limita a ideia de que algo só seria válido se justificado por argumentos. Como vimos tratar dessa forma gera alguns problemas mas nada que precisamos entrar em detalhes nesse momento.


Segundo o autor do artigo da ética argumentativa Hoppeana, Apel se mostra decidido a encontrar um elo entre todos os seres humanos capaz de ser algum fundamento básico a formular tal ética universal. "Qual era o elemento a priori da qual todos os indivíduos poderiam ser lidos? Qual era o elemento fundamental para encontrar uma ética comum e realmente universal?", ele pergunta. A resposta para ele é a linguagem. Para ele outras alternativas como a consciência e a razão instrumental não seriam componentes universais pois do contrário todos chegariam a mesmas conclusões sobre vários temas. O caminho já está traçado, já partem do pressuposto que devemos alcançar a tal ética universal e em nenhum momento questionam se seria possível ou se ela realmente existe. Isso seria algo bem básico e necessário em algo que se propõe a ser uma espécie de manual passo a passo de como deduzir a ética hoppeana. Se a ética for subjetiva e não for possível alcançar tal ética universal todo o que se segue é inútil. No decorrer do texto ele deixa algumas pontas que podem ser interessantes para contrapontos no futuro, um deles é esse trecho:


"Pragmaticamente, a argumentação pressupõe que pode ser tida como verdadeira,

ou, pelo menos, como convincente, por seus destinatários. Pragmaticamente, todo aquele que argumenta, argumenta no interior de uma comunidade de comunicação, diante de outros, e pretende que esses outros possam concordar com seus

argumentos – ou, minimamente, compreendê-los. "


Esse ponto é importante pois é necessário mútua compreensão dos agentes envolvidos na argumentação, o que como sabemos há vários momentos em que não é possível, seja por ambos falarem idiomas diferentes ou algum dos agentes não estar com suas faculdades mentais intactas. No momento isso não é tão relevante afinal não se criou premissa alguma a partir disso ainda, mas fica a brecha desde então. Um segundo ponto é o questionamento da possibilidade de se chegar a conclusões verdadeiras sem necessidade de um segundo argumentador presente, ou seja chegar a conclusões verdadeiras sozinho. E o autor do artigo sabe disso tanto que tenta responder da seguinte forma:


"Chamo atenção a todos aqueles aos quais até agora fizeram proposições

insanas no sentido da argumentação solitária. Eles estão fundamentalmente

errados. A filosofia apelliana nega veementemente a possibilidade da argumentação solitária, eis que a argumentação pressupõe a busca da verdade. Reconhecemos o mundo então de forma pragmática. Ou algo possui valor verdade, ou algo é falso. Mas analisamos o falso justamente em contraponto ao verdadeiro. Então qualquer proposição pressuporá outra proposição também feita e que tomou a si os ares de verdadeira e que é externa ao indivíduo que está argumentando."


Como vemos o contra argumento do autor seria a impossibilidade argumentar sozinho pois a tal filosofia apelliana supostamente estaria buscando a verdade. Porém é totalmente possível chegar a uma conclusão verdadeira sozinho. A maioria das conclusões verdadeiras no campo científico inclusive são feitas em um estágio inicial sozinho e só então após debate no meio acadêmico é que se tem debate para tentar falsea-la, mas não muda o fato que inicialmente e estava correta e chegou-se a tal conclusão sozinho. Mesmo pensando do ponto de vista de legitimar a propriedade privada, imagine que alguém chega em uma ilha deserta remota e declara toda uma ilha pequena como dele na qual ele faz uso. Ele chega a conclusão que por ele prover os recursos necessários para sua sobrevivência da Ilha, ela é dele. Porém por mais de 20 anos ninguém chega para que ele argumente que aquela ilha é dele mas por 20 anos ele continua subentendendo que a ilha é dele. E aí? A ilha é dele ou só passará a ser dele se chegar um segundo agente para que ambos cheguem a conclusão que a ilha é do primeiro homem? Acredito que a maioria dos ancaps vão concordar que a ilha pertence ao primeiro homem mesmo que ele não tenha argumentado com ninguém sobre isso, pois optar que a ilha não seria dele geraria sérios problemas de legitimidade de terras em uma sociedade ancap. Ou seja a resposta do autor não convence.


Citar proposições que Apel faz para uma argumentação ser válida sem explicar o porque são (como o autor fez) são insuficientes para refutar o ponto. Minha refutação a ética hoppeana normalmente não depende da possibilidade de argumentar sozinho, mas pra quem critica a ética hoppeana por isso, saiba que seu argumento continua de pé. As respostas do autor são insuficientes para refutar esse ponto. Por lógica provamos que é possível chegar a conclusões verdadeiras sozinho.


Logo na sequência o autor inicia com a explanação da contradição performativa. Hoppe, segundo o autor, acrescenta a autopropriedade como um dos parâmetros. Por talvez perceber algum erro de Hoppe o autor deixa claro que o que força a contradição performativa não seria a autopropriedade mas a contradição entre atender aos critérios de Apel para argumentar, que seriam:


- A existência de algo como verdade, diferente da falsidade;

- A existência de proposições que podem ser tidas por verdadeiras;

- A existência de proposições a respeito das quais pode haver concordância intersubjetiva;

- A existência de uma comunidade de comunicação, na qual tal concordância pode ou não se dar;

- A existência de certas regras que funcionam como condição normativa da possibilidade de discussão: o reconhecimento do outro como um igual falante e a não violência no uso do argumento;


Conhecendo a ética hoppeana percebo que fazer tal distinção implica em dois argumentos diferentes. Dificilmente dá pra concluir propriedade privada como lei absoluta disso, que é o que Hoppe tenta fazer e é a base do anarcocapitalismo. Tais proposições também dificilmente podem justificar uma ética objetiva por tratar de temas que em algum momento passam por subjetividade, como o próprio texto supõe a comunidade pode não concordar com as proposições e ter motivos válidos para isso, a impossibilidade de existir proposições tidas como verdade absoluta, que é justamente um dos grandes problemas de criar uma ética universal e até mesmo a dificuldade de definir verdade em temas filosóficos. Na verdade o que fica claro com todo esse raciocínio sobre Apel é que ele não propõe nada de fato, apenas dá alguma base para criação da ideia de contradição performática e as bases que deveriam ser seguidas para quem quer encontrar uma ética universal. E pior, abre brecha para que novos elementos sejam criados e adicionados nos critérios, o que eu particularmente não discordo mas quebra com a ideia de possibilidade de uma ética universal imutável.


Seguimos então para a parte do texto que falará de Habermas, onde se dá o conceito da auto propriedade. Basicamente o que é dito sobre Habermas é que ele entende todos seres humanos como providos de racionalidade e que na busca por uma ética universal essa deverá retirar elementos morais subjetivos de questão e ter validade, verdade e legitimidade. O texto faz outras proposições de Habermas que sem algum argumento prático de fato não dá muito pra concordar ou discordar. É dito por exemplo a diferença entre agir estratégico e agir comunicativo em que o primeiro seria agira visando fazer alguém se comportar de forma que lhe pareça adequada enquanto que o primeiro seria apenas a interação de ambos e cita depois várias formas de argumentação chamada de enunciados, que são formas de se argumentar para chegar em algo. Como eu disse não há muito o que refutar se não tiver um argumento de fato.


Finalmente chegamos em Hoppe


Finalmente o autor tenta ligar os anteriores a Hoppe e talvez disso concluir algum argumento de fato que possa ser refutado. Para ele essa seria uma breve explicação da tese do Hoppe:


"Como Osterfeld corretamente percebe, eu dou uma prova praxeológica para a validade da ética da propriedade privada essencialmente lockeana. Mais precisamente, eu demonstro que apenas essa ética pode ser argumentativamente justificada porque ela é a pressuposição praxeológica da argumentação, e qualquer proposta ética divergente pode por isso mostrar-se estar violando a preferência demonstrada. Tal proposta pode ser levantada, mas seu conteúdo proposicional contradiria a ética pela qual se teria demonstrado uma preferência em virtude da própria ação de fazer uma afirmação,i.e., pelo ato de se engajar numa argumentação. Da mesma forma que alguém pode dizer “eu sou e sempre serei indiferente quanto a fazer coisas”, embora essa proposição contradiga o ato de fazer uma afirmação, o qual revela preferências subjetivas (dizer isso em vez de dizer outra coisa ou de não dizer nada), propostas éticas deturpadas são falseadas pela realidade de efetivamente propô-las."


De cara um erro, que também foi cometido pelo autor ao longo do texto, é tentar associar o que Hoppe entende com o que Locke entende como defesa da propriedade. Enquanto que o guru ancap entende a defesa da propriedade como um fim, Locke entende como um meio para atingir determinado fim, que seria a resolução de conflitos e as pessoas terem de onde tirar seu sustento. O bem estar geral é o objetivo, tanto é que ele impõe limites a obtenção de bens que seria legítimo desde que não falte a outros indivíduos, algo repudiado por ancaps. Mesmo outras interpretações que dizem que Locke não foi contra apropriação infinita de bens dão ênfase que Locke não foi contra a mesma por entender que a lógica capitalista trataria de assegurar bem estar social mesmo com esse problema, algo impossível no antigo sistema vigente. Hoppe apenas a entende como a mais lógica de todas as éticas e portanto ela deve ser seguida a todo custo, ou seja as duas visões são bem distintas. Dizer que Hoppe não ressignificou o sentido de propriedade lockeano é um grande erro.


É dito pelo autor que Hoppe busca se basear em Habermas e tem a argumentação como fator principal para trazer validade a um argumento e não verdade, como segundo ele alguns críticos apontam. Considerando que o erro de Hoppe é o non sequitur entre auto propriedade e propriedade de coisas externas a si, tal fato é irrelevante. A argumentação poderia ser respeitada e a conclusão que se chega ser a propriedade coletiva por exemplo. O non sequitur fica mais claro na segunda citação a Hoppe que o autor faz, que é quando ele diz “Além disso, seria igualmente impossível sustentar a argumentação e contar com a força proposicional do argumento se não fosse permitido apropriar outros bens escassos por meio de apropriação original, colocando-os em uso antes que alguém o fizesse, ou se tais bens e o direito de controle exclusivo relativo a eles não fosses definidos em termos físicos objetivos." Aqui fica mais evidente pois o guru ancap começa a advogar em favor da propriedade privada como lei absoluta a partir da argumentação. Ele alega um pouco antes desse trecho que é necessário reconhecer a auto propriedade para que assim haja argumentação, o que em partes é verdade apesar de algumas limitações já expostas anteriormente, mas depois alega não ser possível argumentar se não houver possibilidade de obter recursos externos para sua sobrevivência, o que está totalmente errado. É totalmente possível argumentar sem que exista propriedade privada dos bens externos a si por exemplo, tanto que índios brasileiros pré colonização e várias outras sociedades ao longo da história argumentavam tranquilamente sem necessidade de ter propriedade privada sobre itens externos a si. Qualquer tentativa de desconsiderar tais possibilidades porque eles não tem propriedade privada e que agir contra a propriedade privada seria objetivamente errado sendo que é justamente o porque disso que se está tentando provar se classifica como falácia do raciocínio circular. Isso pra não falar de pessoas sem capacidade de argumentar, que por essa lógica estariam privadas de direitos por não conseguir formular argumentos. E essa inclusive já é a refutação comumente feita a ética hoppeana, ou seja tal apresentação de Apel e a base em Habermas não mudam que a conclusão de Hoppe está errada pelos mesmos motivos comumente expostos contra elas.


Locke e Hoppe, nada a ver um com o outro



John Locke


O autor prossegue dessa vez tentando associar princípios lockeanos a Hoppe, que seriam o estado de natureza e apropriação por homestead. Sobre o estado de natureza, o guru ancap o glamouriza e entende como o ideal a ser defendido, mas o próprio Locke entende que ele é frágil, que facilmente pode ser levado a um estado de guerra por cada um poder fazer sua lei e que a melhor forma de conter esse problema seria um governo limitado. O que fica evidente nesse trecho bem famoso por sinal:




“A esta estranha doutrina, ou seja, que no estado de natureza cada um tem o poder executivo da lei da natureza, espero que seja objetado o fato de que não é razoável que os homens sejam juízes em causa própria, pois a auto-estima os tornará parciais em relação a si e a seus amigos: e por outro lado, que a sua má natureza, a paixão e a vingança os levem longe demais ao punir os outros; e nesse caso só advirá a confusão e a desordem; e certamente foi por isso que Deus instituiu o governo para conter a parcialidade e a violência dos homens. Eu asseguro tranqüilamente que o governo civil é a solução adequada para as inconveniências do estado de natureza, que devem certamente ser grandes quando os homens podem ser juízes em causa própria, pois é fácil imaginar que um homem tão injusto a ponto de lesar o irmão dificilmente será justo para condenar a si mesmo pela mesma ofensa.”


Novamente Hoppe pega apenas algum ponto de Locke e ignora sua tese por completo, o que impacta diretamente na legitimidade de um argumento como sendo de Locke, ou de qualquer outro autor.


Por fim Hoppe tenta associar o princípio de homestead de Locke para justificar a apropriação de bens externos a si. Como vimos anteriormente Locke defende a propriedade como um meio e não um fim, as pessoas podem se apropriar de bens para seu consumo contando que não se apropriem exageradamente a ponto de faltar a terceiros, algo que não é feito por Hoppe que se baseia no homestead para justificar a propriedade privada como um fim e só isso. Não que isso torne a defesa de Hoppe errada necessariamente, mas no mínimo concluímos que tal defesa de propriedade não é lockeana. Além do mais agora temos algo que de fato a torna errada no sentido de justificar propriedade privada como lei absoluta. Eles confundem justificar eticamente com o conceito de justiça. Poderíamos dizer que é justo que quem produziu algo , devido ao trabalho dele e as energias gastas por ele , seja o dono do que ele produziu , mas nunca poderíamos dizer que isso é justificado eticamente.


"Mas justiça e ética não andam juntos?"


Nem sempre . Ética é um conjunto de valores que determinam o certo e errado das ações humanas e justiça um senso que nos aponta qual a melhor ação para alguns casos no nosso dia a dia. Assim é bem possível que em vários casos uma conflite com a outra. Pensemos em alguns casos simples para melhor exemplificar isso :


Imagine que alguém gripado espera atendimento na fila de um hospital privado. De repente alguém que levou um tiro na cabeça chega também a procura de atendimento. Não seria justo que o cara que tomou um tiro passasse na frente do cara gripado pelo risco de vida ser muito maior ? Provavelmente qualquer um com bom senso responderia sim . Porém seria ético? A maioria das pessoas também responderia sim pois como sua base ética entenderia que a vida humana é mais importante que propriedade, mas para os próprios libertários dependeria das leis do hospital privado. Caso o dono não autorizasse que ele passasse na frente então não seria ético na visão libertária mesmo sendo justo.


Como vemos falar de ética não é algo tão simples. A começar pela não definição se essa seria objetiva ou subjetiva. Por um lado fica claro que o entendimento do certo e errado muitas vezes passa por conceitos subjetivos dos indivíduos, mas por outro lado algumas coisas se mostram errado e quem discorda está visivelmente errado também. Assim caso assumirmos que a ética é objetiva , e qualquer sociedade que tente legitimar o início de assassinatos de pessoas estará objetivamente errada. Não porque é injusto apenas , mas porque é anti ético. Em compensação assuntos que tratem de justiça (conceito relativo) e não ética (conceito objetivo ) poderiam ser legitimados ou deslegitimados pelas sociedades sem torna-las objetivamente erradas. A ética então caso seja objetiva , não vale para a maioria dos casos. Na verdade o único tema que dá para deduzir objetivamente e eticamente errado são as agressões físicas. Qualquer outro tema estaria relacionado a moral ou justiça , que são subjetivos e não haveria razão baseada em ética para preferir um ao outro , teríamos de apelar ao utilitarismo , o que seria melhor na prática , mas isso ancaps rejeitam. Seriam apenas formas de organização diferentes baseadas em conceitos relativos de justiça.


A propriedade como vimos ao falar do índios brasileiros pré colonização, é só uma forma de organização social como outra qualquer. Não é algo inerente a sociedade . Dizer que algo passa a pertencer a alguém porque a pessoa trabalhou naquilo é um senso de justiça e que já presume propriedade. Soa algo do tipo :


" A partir do momento que todos são coagidos a respeitar propriedade então podemos deduzir que para definir de quem serão as propriedades a base é o trabalho de cada um "


Esse raciocínio em nenhum momento justifica a propriedade a priori ( pelo menos não de forma objetiva ) , apenas usa um senso de justiça relativo para definir de quem serão as propriedades , mas não o justifica eticamente.


O non sequitur de Hoppe


Aproveitando que o autor cita um trecho de Lacombi que diz: “A fim de demonstrar essa afirmação, pode-se proceder por absurdo [7]. A negação do princípio do elo original significa dar o direito de apropriação por via indireta que necessariamente passa por uma declaração verbal. Contudo, não se pode permitir que um indivíduo reivindique propriedades via declarações sem entrar em contradição com a auto propriedadepois isto implicaria na possibilidade de reivindicar corpos de terceiros. Claramente isso envolve uma contradição prática pois ninguém pode entrar no curso de defesa de uma tal declaração sem simultaneamente reivindicar o controle exclusivo do próprio corpo.” E sabendo que esse é o ponto central da argumentação hoppeana já vamos refuta-la de uma vez.


Como dito antes há um non sequitur entre auto propriedade e propriedade privada de coisas externas a si, mas porque desse non sequitur? Simplesmente porque há uma grande diferença entre auto propriedade e propriedade de coisas externas a si. Auto propriedade e propriedade de coisas externas a si se diferem porque uma é inerente ao ser humano e outra é conquistada a partir de convenção social.


A agressão a auto propriedade dos indivíduos é uma agressão objetiva pois atenta contra algo que já existe objetivamente independente se as pessoas concordem ou não . Eu sou dono do meu corpo e pronto, mas a propriedade de coisas externas a si não é assim. Algo só é seu se houver um acordo social que além de te permitir fazer isso (se apropriar de coisas ) , vai coagir terceiros que tentarem se apropriar dela. Como algo pode ser uma agressão , se é algo abstrato que só vale dentro de relações humanas ? Não é necessário reconhecimento social para eu controlar minhas ações e ser dono do meu corpo, mas para um pedaço de terra isso é necessário. Para você ver como funciona isso , imagine o ato de andar por um território e pegar uma maçã do pé em uma sociedade indígena brasileira pré colonização e em nossa sociedade . Repare que a atitude é a mesma, apenas pegar uma maçã no pé e andar por um território. Onde pegar uma maçã no pé e andar por um território agride uma pessoa ?


No entanto a visão das duas sociedades é que muda, o que prova que propriedade só pode existir dentro de relações humanas e não causa dano objetivamente como um soco, por exemplo. Um soco é danoso nas duas sociedades, se eu tomar um soco na sociedade indigena pré colonização ou na sociedade atual eu vou me machucar do mesmo jeito, por isso pode ser objetivamente uma agressão, já pegar uma maçã no pé e andar por um território não pode. Logo agredir a propriedade não pode ser objetivamente uma agressão, já que a existência dela muda de sociedade para sociedade, ou em poucas palavras é subjetivo . E você nem precisa acreditar em mim, o Callahan (um libertário!) já apontou os mesmos erros na ética hoppeana.


Outro erro proveniente de Hoppe dizer que o fato de alguém argumentar já implica o uso do corpo e isso já legitima a propriedade privada logo essa deve ser a única lei absoluta, além do visível non sequitur, é que analisando as premissas de Hoppe, o máximo que podemos concluir é que ao argumentar a pessoa é dona dos meios que a fazem argumentar como boca, cordas vocais, pulmão, coração, etc... mas não do pé, mão, perna, cabelo e outras partes do corpo que é possível argumentar sem eles. Novamente esse mesmo erro foi apontado por Callahan e você não precisa acreditar apenas em mim.


Reparamos que toda a pseudo construção em Locke, toda a suposta argumentação sobre validade de Habermas e os pontos de Apel são irrelevantes para essa discussão, pois apenas mostram as influências de Hoppe para chegar a tal conclusão que se mostra errada. O problema é a propriedade privada como lei absoluta e derivar ela de auto propriedade, e isso só Hoppe fez.


Existem outros problemas com a ética hoppeana, como por mais que ancaps não assumam, por questões óbvias, a verdade é que a ética hoppeana cai na guilhotina de Hume que diz que uma lei não pode se derivar de um fato. Se quiser tirar a prova é só perguntar ao ancap o que legitima a propriedade privada como lei absoluta. Ele dirá que o fato da pessoa argumentar e controlar seu corpo, que é um fato, logo uma lei (propriedade privada) de um fato (argumentação e controle do corpo), logo guilhotina de Hume.


Além disso ela legitima bizarrices como pais deixarem os filhos morrerem de fome. Não é segredo pra ninguém que a ética libertária já legitimou absurdos como pais deixarem filhos morrer de fome, sendo isso defendido pelo próprio Rothbard no livro dele. Se pensarmos bem a ética hoppeana também legitima isso e vários outros absurdos. Ao contrário do que ancaps frequentemente defendem Hoppe não corrigiu Rothbard sobre as crianças, isso porque em nenhum momento há discordância entre os dois. Hoppe apenas acrescenta a argumentação como forma de legitimar a propriedade privada como lei absoluta , uma vez essa legitimada as bizarrices que ela gera são as mesmas. Para explicar melhor vamos ponto a ponto em cada um:


Com Rothbard :


1) A propriedade privada é a lei absoluta; 2) A única regra é não iniciar agressão contra a propriedade privada de alguém; 3) Não alimentar não é iniciar agressão a propriedade privada; 4) Portanto não existe a lei de que os pais são obrigados a alimentar os filhos; 5) Logo os pais não são obrigados a alimentar os filhos e deixar eles morrerem de fome é ético pela ética libertária;


Com Hoppe:


1) Se eu argumento eu reconheço propriedade privada sobre meu corpo; 2) Se eu tenho propriedade privada sobre meu corpo a propriedade privada deve ser a lei absoluta ; 3) A propriedade privada é a lei absoluta; 4) A única regra é não iniciar agressão contra a propriedade privada de alguém; 5) Não alimentar não é iniciar agressão a propriedade privada; 6) Portanto não existe a lei de que os pais são obrigados a alimentar os filhos; 7) Logo os pais não são obrigados a alimentar os filhos e deixar eles morrerem de fome é ético pela ética libertária;


Portanto não, Hoppe não corrigiu as bizarrices que a ética libertária, por mais bizarro que pareça ela permite os pais deixarem os filhos morrerem de fome. Além dessa tem muitas outras bizarrices que são legitimadas pela ética libertária como pedofilia, tortura de animais, charlatanismo e cercamento. Especialmente a ética hoppeana leva a concluir que pessoas sem capacidade de argumentar (como problemas mentais, ou em coma, etc...) não teriam direitos. Ancaps tentam alegar que isso não é verdade porque essas pessoas teriam capacidade de argumentar em potencial. Isso é mentira porque não se sabe o que a pessoa quer, sendo que ela poderia até querer se matar e como as pessoas estão a mantendo viva estariam ferindo o PNA dela, ou seja tal argumento ancap não cola. Aí eu te pergunto, uma ética que legitima tudo isso pode estar certa? Óbvio que não. Além disso como já dito ela legitima várias outras coisas visivelmente erradas, como charlatanismo, pedofilia, cercamento e tortura de animais. Mas acho que fica muito vago eu ficar citando que tais coisas são permitidas pela ética hoppeana e não explicar o porquê. Vamos lá então:


Tortura de animais: Pela ética hoppeana animais não tem direito e são propriedade. O dono pode fazer o que quiser com ele até torturar. No entanto pela bioética tal ato é anti ético porque causa sofrimento desnecessário a um ser sensciente.


Pedofilia: Se a criança tem auto propriedade então ela faz o que quiser com o corpo. Logo se ela consentisse com o ato sexual não haveria nada de errado pela ética libertária. Ancaps tentam alegar que para um contrato ser válido as duas partes tem que estar cientes do que se trata, como crianças não entendem sexo elas não teriam como consentir e o contrato se torna inválido. Só que isso é uma falácia, se fosse assim alguém assinar um contrato com um hospital para uma cirurgia jamais teria conhecimento de todo processo e as consequências e riscos que uma cirurgia pode gerar porque não é todo mundo que tem conhecimento especifico em medicina. O contrato entre hospital e pessoas seria inválido também ? Ou seja por mais bizarro que pareça, sim a ética libertaria permite a pedofilia "consentida". No entanto tal argumento que crianças não entendem sexo e por isso não podem consentir é válido e por isso pedofilia é anti ética, mas obviamente não pela ética hoppeana.


Cercamento: Caso não saiba cercamento significa comprar todas propriedades em volta de uma casa e impedir o dono de sair e faze-lo morrer de fome. Sinceramente uma vez com a propriedade privada como lei absoluta em vigor e com a máxima "Cada um faz o que quiser com a propriedade privada dele desde não inicie agressão contra propriedade privada dos outros" na prática, não consigo pensar em nada que impeça isso. Falar que a pessoa que compra está sujeita a contratos anteriores é entrar em contradição com "Imposto é roubo porque eu não sou obrigado a seguir regras e contratos que nunca concordei".


Charlatanismo: Há várias definições de charlatanismo, mas nesse caso estou falando de um vendedor mal intencionado que vende uma casa para outro indivíduo e nas letras miúdas está escrito que ele dar o rim dele para o vendedor, por exemplo. Visivelmente anti éticas que não vejo como esse acordo voluntário seria impedido pela ética libertária.


Tudo isso é anti ético e a ética hoppeana os permite, logo ela está errada.


Sobre a praxeologia


Em seguida o autor prossegue dessa vez falando sobre a praxeologia e os fundamentos praxeológicos da ética. Passa boa parte das páginas explicando algo que pode ser resumido que humanos agem e usam meios para alcançar fins. No final isso apenas incorre no velho argumento ancap que visa defender a propriedade privada como lei absoluta porque essa seria a melhor forma de evitar conflitos, o que é falso. Primeiro que ela não é a única capaz de evitar conflitos sobre meios escassos. Várias sociedades ao longo da história não tiveram propriedade privada e mesmo assim não colapsaram e nem ficaram sem lei , eles arrumavam outras formas de evitar conflito.


Aqui é importante destacar que segundo os ancaps, não apenas Hoppe, para uma lei ser válida ela não precisa apenas ser capaz de evitar conflitos mas também valer o tempo todo e ser a mesma pra todo mundo. Nesse caso pensemos em uma sociedade de propriedade coletiva em que tudo que as pessoas produzem é de propriedade coletiva como os indios brasileiros pré colonização ou a Colônia de Cecília. As leis de propriedade coletiva valem o tempo todo pois o tempo todo a produção é de propriedade coletiva , vale pra todo mundo pois todo mundo tem que dar o que produz para a propriedade coletiva e resolve conflitos. Não estou defendendo que a propriedade deve ser coletiva , apenas mostrando que pela lógica ancap apresentada as duas seriam igualmente válidas. Um critério de desempate entre as duas poderia ser qual é melhor na prática , aí podemos deduzir que a propriedade privada seria melhor por alocar melhor os recursos , mas isso seria utilitarismo, algo que ancaps rejeitam.


"Mas como resolve conflitos se dois indivíduos quiserem usar algum recurso escasso ao mesmo tempo?", poderia alegar um ancap.


Eles vão entrar em um acordo, se for algo como um carro ele vão decidir a hora que cada um pode usar , se for algo como comida eles vão dividir um pouco pra cada um. Isso poderia acontecer até mesmo no anarcocapitalismo em sociedades de empresas , negócios de família, alguma rua ou condomínio privado que pertencesse aos moradores de uma região. Ou seja não é algo absurdo de se imaginar. As formas de resolução nesse caso são as mais variadas e já acontecem inclusive hoje. A única forma desse arranjo social não dar certo é se uma das partes não aceitar os acordos. Se for pra cogitar isso então a própria propriedade privada passa a ser inválida , o que nos leva ao segundo ponto.


Ancaps partem do princípio que a pessoa excluída do uso de propriedade privada vai aceitar pacificamente a exclusão. Mas se ela não aceitar não cessará conflito e a ética libertária vai pelo ralo. Ancaps nesse caso alegam que a premissa não é necessariamente a lei acabar com todos conflitos mas sim se todos seguindo ela a risca ela não gerará conflitos. Novamente errado pois se for assim a propriedade coletiva também se seguida a risca não gera conflitos. Basta eles chegarem em um acordo quando ambas partes quiserem usar alguma bem escasso. Se ainda acha um absurdo isso acontecer saiba a sociedade nunca foi tão pacífica e segundo os ancaps como Hoppe atualmente a sociedade é mais coletivista que antes. Ou seja claramente a forma de organização estatista resolveu melhor os conflitos que sociedades mais individualistas do passado. Por essa lógica a ética estatista seria mais ética que a de propriedade privada.


Além do mais a lei de propriedade privada mesmo se seguida a risca não pode resolver todos conflitos principalmente no que diz respeito à aplicação de leis. Já abordamos isso no post sobre justiça privada mas resumindo : Imagine um atropelamento acidental. O cara que atropelou segue o tribunal privado A que diz que a punição é uma indenização de 400 reais ao atropelado , e o cara que foi atropelado segue outro tribunal privado B que diz que a punição é 5 anos de serviço comunitário. Qual vai prevalecer ? Ambos entenderam que atropelar é errado por violar a propriedade e ambos só tem obrigação com o tribunal dele. Não tem como obrigar ninguém a seguir o outro. Assim temos um impasse caso o atropelado queira ser julgado em um tribunal e o segundo em outro. Gerou conflito e ambos seguiram a propriedade privada a risca. E não pense que se limita a isso. Existem temas que não são consenso entre libertários que seguindo unica e exclusivamente a ética libertária gera conflitos como aborto , grávida usar drogas , cercamento , etc... Resumindo : A ética libertária faz um non sequitur dizendo que ela é a única capaz de resolver conflitos e no final não resolve , estando assim duplamente errada.


Por fim, após ler todo o artigo uma coisa que ficou na minha cabeça é : Mas afinal, o que Hoppe realmente quer defendendo a propriedade privada como lei absoluta? Passada toda essa argumentação, uma coisa que me chama a atenção é a discrepância entre dois momentos da argumentação hoppeana: em um primeiro momento ele parece defender a ética de propriedade privada porque ela seria a mais lógica ou a mais correta que as outras mesmo que seja menos eficiente na prática, algo que os ancaps endossam comumente em seus discursos ao serem refutados em debates sobre a necessidade do estado para prover a ordem e a prosperidade de uma sociedade desde que seja limitado. Quem nunca ouviu de um ancap a associação do estado a escravidão e como que mesmo com ambos sendo bons na prática ainda seriam anti éticos? É inclusive comum ancaps soltarem frases de efeito que eles viram no Ideias Radicais como “Dizer que o estado é um mal necessário é como defender a escravidão no passado com a alegação que não haveria ninguém pra plantar café!”. Uma afirmação errada em vários níveis, pois como Acemoglu provou em seu livro “Porque as nações falham", é justamente a escravidão na África e Américas (Esse segundo em regimes como a mita e encomienda) que levaram a intensificação de instituições extrativistas e impediram a alocação de pessoas em setores que seriam mais produtivas, e isso é a razão do subdesenvolvimento de vários países. Tecnicamente falando nem sob o ponto de vista utilitário daria pra defender a escravidão. Mas ignorando isso o que fica claro é que anarcocapitalistas estão dispostos a defender o que eles acreditam ser correto mesmo que isso custe uma sociedade menos produtiva e menos próspera.


Isso entra em contradição com a ideia de defender a propriedade privada como lei absoluta porque ela seria a melhor forma de evitar conflitos. Imagine que uma forma não baseada em propriedade privada como lei absoluta de organização social seria a melhor forma de evitar conflitos, os anarcocapitalistas então passariam a defende-la? E nem precisamos apenas imaginar porque como Steven Pinker provou em seu livro “Os anjos bons de nossa natureza” o estado foi a entidade que melhor evitou conflitos na história da humanidade, reduzindo os níveis de violência como assassinatos, roubos, estupros, violência contra minorias, crianças, etc...ao menores patamares da história. Não qualquer tipo de estado claro, mas o estado democrático e liberal. Dizer que o estado não pode ser uma opção porque ele vai contra a propriedade privada como lei absoluta sendo que é exatamente a validade dessa em detrimento do estado que se está querendo provar é uma falácia do raciocínio circular! Se o critério é evitar conflitos então o estado é a melhor opção, se o critério é apenas a defesa da propriedade privada deve-se provar porque ela deve ser ou assumir que é mera referência pessoal que ninguém é obrigado a concordar. Enfim, ou se defende a propriedade privada como lei absoluta porque seria mais ética ou porque seria melhor do ponto de vista utilitário. Alegar ora um ou ora outro quando é conveniente é pura hipocrisia. A menos claro que se ache os dois ao mesmo tempo, o que está duplamente errado.


Conclusão: A ética hoppeana falha miseravelmente no que se propõe a fazer, que é se mostrar como a única ética logicamente válida e que deve ser o grande pilar da qual todas relações humanas vão se basear e que torna uma lei legítima ou não. Na verdade, o que torna uma lei legítima ou não é uma discussão bem mais complexa já muito bem feita pelo direito. Mas para não ficar totalmente em aberto e parecer que o único intuito do post é apontar o ancap como errado sem propor nada melhor no lugar, posso falar brevemente algum critério melhor que propriedade privada absoluta como lei.

De cara podemos excluir argumentos como que uma lei não deve ser coercitiva, muito pelo contrário. Toda e qualquer lei deve ser coercitiva, a própria lei de propriedade privada como já mostrado no texto é coercitiva. A questão é pelo que se está coagindo e baseado em que. Aliás esse é o grande ponto da discussão sobre ética e lei: Baseado em que elas devem existir? O ideal é que elas sejam baseados em fatores objetivos, pois do contrário não passariam de mera opinião pessoal que ninguém é obrigado a concordar. Assim excluímos leis baseadas em religião, opinião, crença ou mera convenção cultural. Se não afeta terceiros fisicamente, e já vimos que a auto propriedade é objetiva, não passa de um exercício de liberdade individual que não deve ser restringida.


A lei deve se basear em permitir as liberdades individuais ao máximo possível. No entanto uma vez que somos seres vivos temos necessidades a serem satisfeitas para sobreviver. Caso essas não sejam saciadas os indivíduos morrerão e acredito que ninguém quer isso. Assim, visando não só a sobrevivência da espécie mas um certo nível de bem estar social a lei ao mesmo tempo que vise garantir liberdades individuais pode se basear em algum nível de utilitarismo, ou seja beneficiar o maior número de pessoas possíveis. Quanto mais pessoas forem beneficiadas com uma lei melhor ela será. Leis que tragam prosperidade a sociedade são melhor que leis que não tragam. Assim como já ficou provado ao longo da história da humanidade a propriedade privada aloca melhor os recursos e traz mais estímulos a produção, e essa por sua vez leva a maior prosperidade da humanidade. O que não significa que ela é perfeita, havendo sempre pessoas pobres incapazes e pagar por certos serviços ou serviços que não respondem muito bem a lógica de mercado (como pesquisa científica de base ou justiça) o ideal é existir serviços bancados pelo estado visando trazer maior prosperidade a sociedade. Aí entra imposto para bancar o serviço de justiça, educação, saúde, pesquisa científica e vários outros, e nisso o liberalismo parece ser a melhor opção.


É claro que isso é apenas um recorte de uma discussão muito mais complexa, afinal estou tratando apenas da organização social e não entrando em méritos como o causar sofrimento ser objetivamente anti ético, que nos colocaria no debate sobre direito dos animais por exemplo. Ou claro, que a prosperidade não deve ser alcançada a qualquer custo, devendo haver o mínimo de critério e direitos individuas baseado justamente na ideia de beneficiar mais pessoa possíveis, afinal mesmo que a escravidão gerasse mais prosperidade a humanidade ela não é aceitável de forma alguma. Mas já mostra como realmente deveria se dar a discussão, e não a forma limitada e completamente sem nexo que ancaps fazem. Seria até muita pretensão minha querer formular uma tese ética de lei que se justifique do começo ao fim, não entre em contradição em momento algum e se sustente pelos séculos e séculos da humanidade mesmo com as constantes transformações sociais que se seguem, algo que nem os maiores filósofos de toda a história conseguiram fazer, mas ao menos o que deve nortear o debate acredito que seja esse e não apenas proprietarismo tosco puro e simples porque sim como ancaps fazem.


Enfim, o reducionismo que os anarcocapitalistas fazem de um assunto tão complexo que é o direito, chega a ser ridículo e não serve para mais nada a não ser atrapalhar o desenvolvimento da sociedade. Lembrando apenas que em nenhum momento estou negando a importância da propriedade privada e nem cogitando que ela não deve existir, muito pelo contrário. Quem estuda economia e historia de verdade sabe que a propriedade privada cumpre os requisitos de melhorar a vida em sociedade melhor que qualquer outra regra pois aloca melhor os recursos. Mas quem estuda história e economia de verdade também sabe que não é a propriedade como lei absoluta como os ancaps defendem que permitem isso, foi necessário o surgimento do estado. No mais, até o próximo post!





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1 comentário


Soldado SD
Soldado SD
30 de abr. de 2023

Eu sou Marxista-leninista-maoista, mas eu gostei bastante da sua refutação à ética Hoppeana. OBRIGADO PELA MUNIÇÃO, CAMARADA

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